Cruz, A
Meditações Filosóficas e Religiosas Ditadas pelo Espírito Lamennais
(Sociedade Espírita de Paris – Médium: Sr. A. Didier)
A CRUZ
Em meio às revoluções humanas, em meio a todos os distúrbios, a todos as irrupções do pensamento, eleva-se uma cruz alta e simples, fixada num altar de pedra. Um jovenzinho esculpido na pedra tem nas mãos uma bandeirola, sobre a qual se lê esta palavra: Simplicitas. Filantropos, filósofos, deístas e poetas: vinde ler e contemplar essa palavra; é todo o Evangelho, toda a explicação do Cristianismo. Filantropos, não inventeis a filantropia: não existe senão a caridade; filósofos, não inventeis uma sabedoria: só há uma; deístas, não inventeis um Deus: só existe um; poetas, não perturbeis o coração do homem. Filantropos, quereis quebrar as cadeias materiais que mantêm cativa a Humanidade; filósofos, elevais Panteões; poetas, idealizais o fanatismo. Para trás! Sois deste mundo, e o Cristo disse: “Meu reino não é deste mundo.” Oh! sois por demais deste mundo de lama, para compreenderdes estas sublimes palavras; e se algum juiz bastante poderoso vos disser:
“Sois filhos de Deus?” vossa vontade morreria no fundo da garganta e não podereis responder como o Cristo, em face da Humanidade: “Vós o dissestes.” – “Vós todos sois deuses”, disse o Cristo, quando a língua de fogo desce sobre as vossas cabeças e penetra os vossos corações; sois todos deuses, quando percorreis a Terra em nome da caridade; mas sois filhos do mundo quando contemplais os sofrimentos atuais da Humanidade e não pensais em seu futuro divino. Homem! que aquela palavra seja lida por teu coração e não por teus olhos de carne. O Cristo não erigiu um Panteão: ergueu uma cruz.

BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO

As diversas ações meritórias do Espírito após a morte são principalmente as do coração, mais que as da inteligência. Bem-aventurados os pobres de espírito não quer apenas dizer bem-aventurados os imbecis, mas também os que, cumulados de dons intelectuais, não o empregaram para o mal, pois é uma arma muito poderosa para arrastar as massas. Entretanto, como dizia ultimamente Gérard de Nerval13, a inteligência desconhecida na 13 Alusão a uma comunicação de Gérard de Nerval. Terra terá grande mérito perante Deus. Com efeito, o homem poderoso em inteligência, lutando contra todas as circunstâncias infelizes que o vêm assaltar, deve regozijar-se com estas palavras: “Os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros”,o que não deve ser entendido unicamente na ordem material, mas, também, nas manifestações do Espírito e nas obras da inteligência humana. As qualidades do coração são meritórias, porque as circunstâncias que as podem impedir são muito pequenas, muito raras, muito fúteis. A caridade deve brilhar por toda parte, apesar de tudo, para todos, como o Sol brilha para todo o mundo. O homem pode impedir que a inteligência de seu próximo se manifeste, mas não dispõe de nenhum poder sobre o coração. As lutas contra a adversidade, as angústias da dor podem paralisar os impulsos do gênio, mas são incapazes de neutralizar os da caridade.

A ESCRAVIDÃO

Escravidão! Quando se pronuncia este nome, o coração sente frio, porque vê à sua frente o egoísmo e o orgulho. Quando um padre vos fala de escravidão, está se referindo à escravidão da alma, que avilta o Espírito do homem e o faz esquecer a sua consciência, isto é, sua liberdade. Oh! sim, esta escravidão da alma é horrível e diariamente excita a eloqüência de mais de um pregador. Mas a escravidão do hilota, a escravidão do negro, que se torna aos seus olhos? Diante desta questão o sacerdote mostra a cruz e diz: “Esperai!” Com efeito, para esses infelizes, é a consolação a oferecer, e ela lhes diz: “Quando o vosso corpo for dilacerado pelo chicote até a morte, não penseis mais na Terra; pensai no Céu.” Tocamos aqui uma dessas questões graves e terríveis que transtornam a alma humana e a precipitam na incerteza. Estará o negro à altura dos povos da Europa, e a prudência humana, ou, antes, a justiça humana deverá mostrar-lhe a emancipação como o meio mais seguro de alcançar o progresso da civilização? Nesta questão os filantropos apresentam o Evangelho e dizem: Jesus falou de escravos? Não; mas Jesus falou da resignação e disse estas sublimes palavras: “Meu reino não é deste mundo.” John Brown, quando contemplo o teu cadáver na forca,sinto-me tomado de profunda piedade e de apaixonada admiração; mas a razão, esta brutal razão que incessantemente nos faz buscar os porquês, leva-nos a nos perguntar a nós mesmos: “Que teríeis feito depois da vitória?”

Allan Kardec
R.E. , fevereiro de 1862, p. 94